sexta-feira, 30 de março de 2007

Bola fora

A entrevista ia bem.
O padre esguio de meia-idade, extremamente solícito, deu informações úteis. O sotaque com que disse “bom dia, menina de Deus” me fez pensar - ‘de onde veio o homem?’. A garrafa térmica e a cuia de chimarrão à tiracolo denunciavam uma possível brasilianidade, mas o sotaque era por demais carregado.
No final da entrevista, entre o muito obrigada e o tenha um bom dia, a gafe:

-De que país o senhor veio?
-Rio Grande do Sul - respondeu, sem ironia.

Vivo fazendo dessas.

terça-feira, 27 de março de 2007

Geralda

Quando eu era criança e morava em Santana, os trajetos eram muito ricos de personagens. Eu, minha mãe e meu irmão andávamos a pé para cima e para baixo (meu pai, só nos finais de semana) e assistíamos a toda a sorte de espetáculos do cotidiano.
Do outro lado da calçada de um quartel azul calcinha da rua Alfredo Pujol tinha a Geralda. Esse quartel, se as informações familiares estão corretas, era da Força Pública - que depois virou a Polícia Militar de São Paulo. A Geralda vivia na rua, maltrapilha, a carapinha suja colada na cabeça e uma garrafa na mão. Não ofendia os passantes, mas era implacável com o muro do quartel.
Seu lugar preferido era a frente de um boteco onde um gato amarelo dormia sobre um saco de batatas. A dona, uma ruiva gorducha e sardenta, vivia com os óculos de leitura descansando sobre uns peitões. O volume dos peitões deformava o símbolo do São Paulo Futebol Clube, cuja camiseta era o uniforme de trabalho da tal dona. E de-ze-nas de pôsteres do SPFC adornavam as paredes. Minha mãe jurava que nunca compraria as batatas dormidas do gato amarelo. Eu achava sensato.
Rezava a lenda que a Geralda foi abandonada pelo marido, que trabalhava ou morava, sei lá, no quartel (que hoje é de um muito bem comportado bege). Aí descambou - e descontava no muro.
Tempos atrás imaginei a história da mendiga da minha infância. Ficou triste. Mas ela não parecia feliz, mesmo.


Lá vai Geralda arrastando o saco de feltro e as decepções da vida. Lá vai Geralda, com o ventre murcho, descendo a ladeira a passo largo e solto. Desleixada, maltrada, o amor não escolheu Geralda.
Mas Geralda escolheu viver para o amor. Única possibilidade de ver o mundo, Geralda vive com o coração. Só o dela, porque o que julgou ter conquistado, esse se perdeu.
Era soldado da Força Pública. Preto retinto, como Geralda, era homem simples, um sacrifício virar cabo.
Tinha orgulho da farda do marido, lavava, passava, pregava botões. Adorava exibir o uniforme no varal para o mulherio da vizinhança. É do meu homem, pensava, enquanto cuidava para que o cachorro passasse longe. Pensava bem que a vizinha podia passar e olhar a roupa molhada e limpa do cabo, só para Geralda sentir o cheiro da inveja alheia.
Um dia a farda sumiu do varal. O acontecido não passou incólume, o povo notou e falava que o homem havia se escafedido junto com o uniforme.
-“Foi servir no Araguaia”, justificava Geralda.
O desespero só crescia. Tamanha angústia que, muito antes do previsto, o filho de Geralda com o cabo escorregou para fora da barriga. Chegou tão cedo o moleque, com medo de desencontrar do pai, que ainda não estava pronto para a vida.
Geralda ficou ainda mais só. Tremia só de pensar no que ia contar para o marido quando ele voltasse e não encontrasse o moleque já engatinhando.
Atemorizada, decidiu ela também fazer as malas e ir encontrar ser homem. A mala desmanchou com o tempo, os dentes apodreceram, a roupa gastou e Geralda cansou. Sem notícias, decidiu esperar do lado de fora do quartel.
Tomava um trago para agüentar o frio da noite, bebia pinga para o dia passar depressa. Às vezes, atacava o muro do quartel com um pau a mão e ofensas na ponta da língua . O descontrole acaba com as forças de Geralda. O jeito era sentar no meio-fio e esperar a volta do cabo. Ele havia de entender que o neném não pôde esperar.

sexta-feira, 23 de março de 2007

Para começar

Uns choram porque apanham. Outros, porque não lhe batem.
Já dizia a minha bisavó portuguesa.