sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Personagens da Glória

Ela se chama Kátia, mas podia ser Macabéa.
Cabelo curto tonhonhóin bem miudinho, brincos de arame em forma de coração. Discreta, só conversa com as clientes quando é solicitada. Em silêncio, se concentra nas cutículas e cantinhos mais difíceis e faz uma tromba enquanto trabalha.
Não é mau humor, me parece, é o mais puro estado de alienação do universo ao seu redor.


Já a flagrei esquadrinhando as clientes, nos momentos de folga entre um pé e uma mão.
Com os ombros levemente arqueados, faz o mesmo muxoxo de quando está operando o alicate. E espreita.
Observa e demonstra analisar com a mesma meticulosidade que dedica às unhas e membranas os gestos, expressões e narrativas de seu público.
É fato: a Macabéa postiça presta muito mais atenção na fala de outras clientes do que na de suas.

Não é bonita e nem feia. Não parece alegre e nem triste. E nem é engraçada.
Tenho a impressão de que ela é muito tímida.

Macabéa trabalha no salãozinho da rua debaixo de casa. Só tive a oportunidade de ser atendida por ela duas vezes - é a mais requisitada do salão.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

A vida é trânsito II

Este blog existe desde 2007 e, ano a ano, escrevo cada vez menos posts.
Não é uma marca nada lisonjeira.

O nome "A vida é trânsito" surgiu de uma conversa com uma amiga na qual concluímos: a vida é trânsito. Hoje entendo que a vida é trânsito, é encontro, é desencontro, é um amontoado de gente tentando ser feliz.
Ninguém é feliz sozinho. Nas minhas mudanças de lar mais recentes - foram três cidades e quatro lares em menos de um ano - tive muitos momentos daqueles em que você, de repente, se vê em meio a um bando de gente semi-conhecida. É uma dureza. Ainda bem que entre os semi-conhecidos surgiram alguns amigos. Não são muitos, mas são amigos, e isso é o que importa.

Outro dia eu vi uma entrevista com o ator e roteirista argentino Ricardo Darín. A repórter, já no fim da entrevista, perguntava a respeito do casamento dele. Darín é casado há mais de 20 anos, separou-se e voltou para a mesma mulher. Percebi uma certa emoçãozinha típica das pessoas que se sentem agraciadas pela vida ao falar dela. Ele disse:

-"É ela quem, há 20 anos, faz com que as coisas pareçam estar sobre os trilhos".

Puxa vida, essa frase me soou tão bem!
"Estar sobre os trilhos" me dá a ideia de uma direção certeira, um rumo.
Um trânsito que sabe onde vai.
(Vejam: ele falou "pareçam estar". Pé no chão, o hermano.)

Explicado o nome do blog, vamos ao porquê do blog.

Sempre gostei de ler. Sempre gostei de escrever.
Penso que me explico melhor escrevendo do que falando.
E queria escrever sobre as coisas que gosto: observações da ordem da subjetividade muito pouco relevantes para o progresso da humanidade.

Penso neste blog como um caderno que vi ontem à venda numa papelaria que adoro no Largo do Machado.
Lindo, capa lisa de papel cartão, folhas de papel amarelado e encorpado.
Cantos arredondados.

Na contra capa, um aviso: caderno para escrita agradável.

É essa escrita que eu valorizo.
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Post A vida é trânsito