quinta-feira, 17 de abril de 2008

A doce avó

Quando a minha avó Irene prestava atenção em alguma coisa, ela sentava mais na ponta do sofá ou cadeira, apoiava os cotovelos sobre os joelhos e segurava as mãos uma com a outra. Nessa posição, com o tronco inclinado para frente, ela dirigia um olhar atento para o interlocutor. Se alguém interrompesse a fala, ela era rápida na repreensão, “olha, ele está falando”. Rápida, mas branda, como foi durante os 25 anos em que convivi com ela.

O assunto não interessava muito, o negócio dela era demonstrar, com olhos, tronco e membros, que estava absorvendo cada informação. Eu me deliciava com o pequeno ritual da minha seleta platéia. Um dia, na casa de Araraquara, eu fui explicar para a minha mãe alguma função do controle remoto. A avó já estava perto dos 80 anos, enxergando mal e um pouco aérea. Não deu outra: mesmo sem entender patavina – vovó nunca usou controle remoto – ela se debruçou sobre o tema e me deu alguns minutos sob seus olhos castanhos.

Com o passar do tempo ela foi se distanciando do mundo e das pessoas. Sinto que a diminuição da visão contribui muito para o exílio em si mesma. Passava os dias sentada na sua cadeirinha de almofadas alaranjadas que, originalmente, eram pretas e brancas. Tinha alguns trejeitos de velhinha, coçava a cabeça como uma velhinha. Ela morreu velhinha, graças a Deus.

Ficava com a televisão ligada por mera formalidade: se perguntávamos o que acontecia na novela, ela dava uma de joão-sem-braço. “Ué, você não está acompanhando?”
Nunca soubemos o quanto, de fato, ela enxergava.

Minha avó Irene é responsável por algumas das minhas recordações mais doces da infância. Ela levou eu e o Gu à missa, ao Mc’Donalds, ao Play Center (bem lembro da Montanha Encantada), fez passeios do TurisMetrô (só quem morou em Sampa nos anos 80 sabe o que é isso), passou álcool com eucalipto nas picadas de mosquito e me deu maçã raspadinha na boca quando eu ficava doente.

[numa tarde febril, lembro de ela ter cantado ‘Yes, nós temos banana’ umas 50 vezes para passar o tempo]

Ela me chamava de lindeza, tinha certeza que o Gu seria escritor e achava que o Corinthians era o melhor time do mundo. “Os outros times têm inveja do Corinthians, isso sim”, dizia. Não deixava ninguém vê-la sem dentadura, morria de pena dos pobres e foi integrante de uma CEB, as comunidades eclesiais de base da Igreja Católica. Ela ia a uma favela da zona norte de São Paulo, perto do Center Norte, ensinar às mães noções de higiene e alimentação. Um dia, ela estava fazendo um curativo com mercúrio-cromo (‘mercúrio’ era sempre ‘cromo’ para a vó) numa criança da favela, e um marginal armado entrou no barraco para se esconder da polícia. Vovó ficou lá, firmona, cuidou de um filho de Deus e depois narrou o fato aos familiares.

Não deixava ninguém com fome. Qualquer pessoa que tocasse a sua campainha recebia um prato de comida. As notícias correm, e quase toda tarde ela servia uma refeição para mendigos e andarilhos. O hábito rendeu um nome genial: McPobre. Os pratos e copos usados pelo McPobre eram devidamente higienizados e escaldados com água fervente.

Quando ela já estava no fim, eu disse que a amava. Ela disse que também me amava.
Continuo amando.

2 comentários:

Wilson Gasino disse...

Muito bonito isso, Maria da Glória Galembeck. Me deu saudade da minha vovó Ione também.

Roberto Viana disse...

lindo texto.
eu era guia do turismetrô, e me emocionei ao saber que ainda lembram dos nossos roteiros, que faziamos com muito amor...

Roberto Viana