segunda-feira, 23 de abril de 2007

Domingo em São Paulo

O avião estava lá desde que ela se entendia por gente. O que não conta muito tempo. A praça atendia mesmo por ‘Praça do 14 Bis’. Todo domingo a mesma coisa: o bicho inclinado, ameaçando um vôo. Inerte. Mesmo assim, desafiando as leis da física, ela via movimento. E escutava o ruído onomatopeico que saía da própria garganta infantil.

Era só o carro iniciar o contorno da rotatória que lá estava ela: mãozinhas no vidro, olhos fixos, a boca a emitir o ronco do motor e a cabeça inclinada, acompanhando o giro do avião.

Não adiantava a mãe falar que aquele não era o 14 Bis que voou na França em volta daquela torre gigante, era inútil explicar que ele nunca sairia do centro do gramado e também em vão a garota sonhava em pular a grade que tomava conta da aeronave, escalar o monumento e assumir o comando.

Deixado pelo caminho o avião, já no clube das regatas, outro encontro semanal: a tenista em posição de saque. Sempre com pose vitoriosa, olhando para as piscinas do Tietê.

-Mãe, quem é?
-É a Maria Esther Bueno, única brasileira a ganhar em Winbledon.

Que coisa chata, deixar lá, tão paradinhas, coisas tão importantes.


***

Entre uma página e outra da minha monografia, achei esse textim que escrevi em 2003. Pelo que lembro, o avião em questão é no Campo de Bagatelli, zona norte de São Paulo.

sábado, 21 de abril de 2007

Findo o mistério: porque hippie não toma banho


Hippie que se preza não é chegado num chuveiro, e isso não é novidade alguma.
Tenho a impressão que, quanto mais ensebado for o cabelo, mais grossa a crosta na planta dos pés e mais azedo o cecê, mais veraz é o amor à condição.
[tive o ímpeto de escrever “causa”, mas não encontrei nenhuma]
Lembro que uma vez vi um hippie bem bonito no 305, indo para a UEL, anos atrás. Tinha um rosto lindo e um corpo de dar inveja aos malhadores de plantão. Aliás, na recordação, ele é até mais agradável do que o foi naquele dia, já que deixou, como rastro, um cheiro acre. Desses que a gente não consegue esconder a careta. Blé.
Não sei por qual razão, o hippie bonito entrou descalço no ônibus. As havaianas estavam presas nos antebraços, uma em cada braço. Os pés, imundos, pareciam patas.
E o moço carregava, não sem atabalhoamento no vai-e-vem do ônibus, seu mostruário de penduricalhos.
Eu não vi, mas provavelmente o que se sucedeu foi que ele desceu e foi para o RU vender os badulaques. Algum universitário bichogrilesco (com o perdão da redundância) gostou do colar de sementes, pechinchou e levou.
Só que estudantes, muitas vezes, são limpinhos que só.
E aí pode acontecer o que aconteceu com a namorada do irmão da amiga.
Pelo pouco que observei, a moça está naquela fase em que a hippice é bonitinha e bem vinda. E que andar de havaianas pode ser uma maneira de manifestar a discordância com ‘a vida como ela é’ ou ainda um jeito de potencializar a leveza dos anos de faculdade.
Sucedeu que, de tanto tomar banho com o colar de sementes, feito pela própria, o colar germinou. Que hippie.

***

Anos atrás uma amiga da amiga ficava com um hippie bonito, de Artes Plásticas. Cobiçadíssimo o moço, aliás.
O romance acabou, mas os piolhos ficaram – nela.
Juro que aconteceu.

quarta-feira, 18 de abril de 2007

Essa é Creudinha

[eu] -E aí, renovou a habilitação?
[ela] -Não deu.
[eu] -Não?
[ela] -Não.
[eu] -Por que não?
[ela] -Reprovei no exame de fezes.

domingo, 15 de abril de 2007

Olha que bonito

"A ternura denuncia a veracidade do amor."

Disse o Frei Betto (Folha de S. Paulo, 08/04/07, p. 3) que foi o Milan Kundera, aquela de "A insustentável leveza do ser", o autor da frase. Gosto.

sábado, 14 de abril de 2007

Agá dois ó

Outro dia comentava com a minha mãe o último relatório do IPCC, que está mais para o livro do Apocalipse. Falávamos, em especial, da perspectiva de um bilhão de pessoas ficarem sem água e que isso é apontado como possível motivador de conflitos mundo afora.
E ela fez um comentário muito pertinente:

-Quem tiver um poço em casa vai fazer o quê? Colocar um guarda para tomar conta?

É. A coisa, que já não está boa, vai ficar feia de verdade.
Penso que, se hoje a “bandidage” fica de olho em carros, celulares, grana e afins, a água vai ser o bem cobiçado do futuro. Mas não consigo imaginar um pé-de-chinelo entrando em casa para roubar o transparente galão de vinte litros.
Antes, acho que estaremos nas mãos de uma máfia da água. Todo mundo sabe do cartel dos combustíveis; e se o modelo migrar para as distribuidoras de água mineral?

***

Odeio ter dor de cabeça. Embota-me a criatividade. E dói.

domingo, 1 de abril de 2007

Caos urbano

Uma mulher saiu para comer pizza com o marido e os dois filhos no sábado à noite. Antes mesmo de fazer o pedido, foi atingida por uma bala perdida e morreu. Ladrões que já haviam praticado o roubo numa locadora do outro lado da rua fugiram, de moto, dando tiro para todos os lados. Um deles sobrou para Suely.
Não sei se o dono da locadora estava armado e ameaçou os caras, mas sei que não tinha polícia - o que reduz as chances de os dois ladrões se sentirem acuados. O que me faz pensar menos que era legítima defesa. Bem, dá para falar em legitimidade quando os caras são ladrões? Não sei.
Fui no local do crime e encontrei a irmã da Suely. Ela chorou sem lágrimas - acho que já tinha secado o reservatório. Fiquei sem palavras.
Sabe o filme Crash, em que todas as histórias se relacionam e você tem todos os lados de uma mesma história? Só tenho o lado da família da Suely. Mas torço, torço mesmo, para que a notícia que escrevi chegue até os dois ladrões e que eles saibam que mataram alguém.
O lado do ladrão não sai no jornal. E nem caberia. Imagine: -"Rôbei pur que tô deveno na boca i eles ia queimá eu", justificou Fumaça [alcunha fictícia]. Não dá para justificar o injustificável.
Londrina já passou do aceitável. Só sei isso.

http://canais.ondarpc.com.br/jl/geral/conteudo.phtml?id=649555

Mono

Quando tenho febre sou tomada por uma sensação que encontra um correspondente lá atrás. Na infância, quando minha mal traçada caligrafia era problema, eu tinha um pânico característico quando a professora estava chegando ao fim da lousa. Ela, prestes a apagar a metade anterior, e eu, que ainda não havia terminado de copiar o que em breve seria não mais que pó de giz. Era uma sensação de “não vai dar, não vai dar”, acompanha de um gelado ruim nas têmporas.
O mesmo acontecia quando a professora decidia vistar os cadernos. Eu bem que preferia que meu nome estivesse no comecinho da chamada e ir logo para a degola. Mas tinha que esperar até o número vinte e poucos da lista para mostrar meus alfarrábios e receber o olhar da reprovação professoral. Zelar pela ordem e “limpeza” [essa era a palavra temida] nos cadernos nunca foi meu forte. Só nos cadernos.
O primeiro registro desse gelado foi quando meu irmão me disse, em 1985 ou 86, que, na próxima vez que o cometa Halley desses as caras na órbita terrestre, minha mãe não estaria mais por aqui. Eram férias de verão; estávamos numa casa alugada em Caraguatatuba. Minha reação foi agarrar a esquadria da janela bem forte e olhar a rodovia que, à noite, parecia um rio de lava. Lembro do nó na garganta e que encostei de leve o beiço no metal gelado da janela. Gelado como as têmporas. Foi pura maldade dele, eu acho.
Esse gelado me acompanha em situações que, a princípio, parecem insolúveis. E, não sei a razão, quando tenho febre, meu cérebro fica meio besta, e é como se eu estivesse diante da lousa que, inevitavelmente, vai virar pó branco de giz.
Gostaria de sentir pelo menos um arremedo desse gelado nas têmporas em relação a minha monografia. Seria um benefício.