sexta-feira, 25 de maio de 2007

Meu apreço pelas palavras



Tenho um fraco pelas palavras desde que me entendo por gente.
Quando era bem pequena, antes mesmo de conhecer as letras, gostava de olhar textos miúdos, tipo dicionário, e imaginar que coisas bem difíceis estavam escritas. Me encantavam em especial as cerifas das perninhas dos "emes" na fonte Times New Roman - que aquela altura não mereciam tão acurada descrição. O sentido mais complexo que eu conseguia atribuir àquele amontoados de sinais era "sais minerais". Sabe Deus porque.
Ainda iletrada, achava que "banheiro feminino" era uma alusão à costela de Adão. Na minha cabeça era "foi menino". Ou seja, foi menino enquanto costela de Adão, e hoje é menina - por isso as mulheres iam ao "banheiro foi menino".

***

Teve um dia que um professor amigo do meu pai ligou em casa, ainda em São Paulo. Eu tinha cinco anos.

[eu]
-Quem é?
[o professor]
-É o Urbano.

[eu]
-Paaaaai, é interurbano.
[pai]
-Mas quem é?

[eu]
-Mas quem é?
[o professor]
-É o Urbano.

[eu]
-Pai, é interurbano.
[pai]
-Mas quem é que quer falar comigo?

[eu]
-Mas quem é que quer falar com meu pai?
[o professor]
-É o Urbano. Ur-ba-no.

[eu]
-Paaaaaai...

Essa lenga-lenga se repetiu umas três vezes até que meu pai tomou uma atitude e foi ver quem era o tal interurbano. Até hoje ele tira sarro de mim por isso. E eu ia lá saber que Urbano é nome de gente?

***

Quem me iniciou no mundo das letras foi meu irmão.
Quem iniciou meu irmão foi meu pai.
Tínhamos cubinhos de madeira e em cada face tinha uma letrinha desenhada. O "gê" minúsculo, em vermelho na madeira clara, era lindo.
Ele juntava uma consoante e uma vogal e formava uma sílaba. E eu tinha que ler. Quando errava, às vezes os cubinhos voavam na minha direção.
No pré III eu não lia fluentemente, longe disso, mas já tinha um domínio razoável das sílabas.
Isso compensava minha pouca habilidade para trabalhinhos de recortar-colar-pintar. E ainda me dava um arzinho de superioridade.

***

Essa falta de jeito para criar as coisas bonitas que tinha na cabeça foram solucionadas com o advento das palavras. Bonitas, sonoras, um universo de sentido no silabário.
Mas sobrou em mim uma falta de jeito que faz com que certas atividades sejam pouco adequadas para mim. Não poderia ser equilibrista, atleta de nado sincronizado, estátua viva, motorista de montanha russa, trabalhar com vendas, reger orquestras.

2 comentários:

Anônimo disse...

o que eu mais gosto de você é que nunca poderia reger uma orquestra. meu desastre preferido.

Carlos Nakamura disse...

Glória,
Eu imagino que coisas como esse "foi menino" façam o Freud sorrir discretamente em seu túmulo, pensando "não falei, não falei?".

O menino vive com medo de ter o pipi arrancado como punição por certos desejos, assim como a menina acredita que ela e as outras mulheres tinham pipis e que já passaram pela tal punição.
É o Complexo de Castração.

Eu me lembro da primeira vez que vi uma menina pelada. Foi a filha dos vizinhos dos meus avós. Eu devia ter uns 5 anos e fiquei aterrorizado com a cena. Foi como se algo faltasse, como o toquinho das pessoas com membros decepados.

Freud sabia! Ahahaha!