quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Pró labore


Uma das coisas que gosto na vida de repórter é poder entrar, autorizadamente, na casa das pessoas e fazer muitas perguntas. Agora no fim do ano, quando estamos preparando um gavetório¹ para as edições pós Natal e pós Reveillon, tenho a oportunidade de fazer algumas matérias frias que me permitem encontrar alguns personagens raros. Ontem fui à casa de uma senhora de 94 anos e bati um bom papo com ela. O porquê de a vovozinha ser notícia deixo para as edições vindouras do jornal.
O layout da senhorinha é o mesmo da dona Dita, a avó do Chico Bento. Com a diferença que a minha personagem é uma negra retinta do cabelo de algodão. Abstive-me no jornal, mas aqui eu posso dizer: ela tem uma barbicha igualmente algodoada. Não pensem que sou cruel, o adorno foi destacado por uma das filhas da senhorinha, que colocou o “fazer a barba” junto com “fazer as unhas” nos hábitos de beleza recém adquiridos pela vovó. Na verdade, ela começou a ir à manicure há oito anos, mas para quem já viveu 94, é um tempo recente. Na verdade, na verdade mesmo, ela não vai a manicure – é a moça que vai a casa da vovó, onde existem seis pares de mãos ávidos por cuidado. Na verdade e em última instância, ela começou a pintar as unhas só depois de concluir que, afinal, não era coisa de biscate, como ela pensou por décadas.
Sem dentes, a senhorinha ri de dar gosto. Ri e fica séria quando conta que o marido, na noite de 1969 em que morreu, foi à zona de meretrício. Mas voltou pra casa e morreu com a cabeça encostada no ombro direito da velha. [por favor, imaginem a versão negra da dona Dita batendo a mão no ombro direito] Só podia morrer mesmo do coração um homem desses.
Ri e faz cara de respeito quando conta que o pai enviuvou cinco vezes e que, aos 90, enterrou a mãe dela que contava com apenas 36 anos. Ri quando conta que toda tarde senta no banco da calçada com a vizinha para ver se ela está viva. Fica séria mesmo quando lembra que aprendeu o puçá com a avó que morreu aos 125. A cara fechada é pela rigorosidade da centenária ou por medo de viver tanto?
Por uma horinha, tive a honra de estar diante de um personagem do realismo fantástico de García Márquez. Mas recusei o café para não ficar presa na casa para sempre.


¹ conjunto de matérias de gaveta, neologismo by myself

Nenhum comentário: